terça-feira, 5 de agosto de 2008

Texto 02 - A Substância Social da Memória

A autora aborda a recente valorização da tradição oral, remonta às origens das chamadas “crônicas”, como eram chamadas na Idade Média as narrativas de episódios do cotidiano. O objeto de registro dos cronistas_ aspectos pitorescos, episódios de família_ constitui a memória oral; quando a história política passa a registrar o poder da burguesia, adota uma forma compacta, visando ao enaltecimento de seus membros, passando a crônica a ser considerada um gênero literário menor, por tratar os eventos de forma descontínua. Esse sentido da História Política é o que entra em crise nos anos 70, as pequenas estórias, que parecem fragmentadas, tomam o seu lugar. Indagando sobre os motivos dessa valorização, conclui não poder a história oficial dar conta das paixões individuais, escondidas por trás dos episódios.
Expõe reflexões a partir dos resultados obtidos em sua pesquisa, cita atas de reuniões oficiais, que não registram conflitos e divergências, são feitas para agradar à facção ou ideologia ocupante do poder, naquele momento. Alerta a autora para o fato de que, muitas vezes, a memória coletiva seja moldada pela ideologia, influindo em depoimentos de testemunhas orais; afirma ainda ter a memória oral seus desvios e preconceitos, omissões, esquecimentos, e como estes revelam os traços deixados na sensibilidade popular da época. Exemplifica com o desnível revelado em depoimentos sobre experiências vividas por contemporâneos, mas que se encontravam em lados opostos; as instituições escolares reproduzem a versão difundida pela classe dominante, mais influente, contrapondo a memória social à lembrança pessoal.
Traz à tona a noção de tempos vivos e tempos mortos, conceituando os primeiros como os que possuem substância memorativa, biográfica; o segundo conceito englobaria as lacunas provocadas pelas filas, percursos no trânsito, etc..
Revê a oposição entre objetos biográficos, os que envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida, como o álbum de fotografias, o relógio de família, tornando-se insubstituíveis ao representarem a sensação de continuidade, e os objetos de status, os valorizados pela moda, mas que não envelhecem com o dono, se deterioram, são descartáveis; a mobilidade a que nos condena o sistema econômico conduz ao desenraizamento e à desagregação da memória. Fotografias familiares expostas numa sala burguesa podem ser contempladas sob dois olhares: o biográfico e o social, convertidas em peças de um mecanismo de reprodução de status. Se a sociedade de massas criou o objeto descartável, a de consumo rapidamente produz, faz circular e logo descarta os objetos de status.
Descreve ainda depoimentos onde se encontram presentes referências a objetos perdidos, a carência provocada por seu desaparecimento. Revela que um dos depoentes chega a citar uma passagem de “Pinóquio”, na qual seu criador, Gepetto, o aconselhava a não jogar nada fora, pois um dia poderia fazer falta; conselho repetido pelos velhos, que não conseguem assimilar a experiência do descartável, para eles um desperdício cruel.
Segundo a autora, a memória seleciona acontecimentos ligados por índices comuns. O cientista social tem como tarefa buscar vínculos entre fenômenos distanciados no tempo. Sendo a rememoração uma retomada salvadora do passado, nos depoimentos biográficos se evidencia o processo de re-conhecimento e elucidação. A experiência de idosos se transforma em conselhos, a história absorve: a moral da história não tem o peso da moral abstrata, mas a graça da fantasia. Alerta contra o mutismo, pois petrifica a lembrança.
Ao abordar a memória, cita Santo Agostinho e Bergson: tratada pelo primeiro como “ventre da alma”, e pelo segundo como a alma da própria alma, percepção que é o resultado da interação de ambiente e sistema nervoso, interferindo no curso das representações. O espaço cumulativo da memória tomaria a forma de um cone, cujo vértice penetra o real, visando a ação pragmática, a percepção do que nos seria útil no momento.
Insiste nos termos narrativa e oralidade, desenvolvidas no tempo, falando nele e dele, a voz representando o fluxo circular da memória entre o presente e o passado.
Ressalta ainda a musicalidade da expressão oral, a sucessão de sílabas fortes e fracas, alternância do tempo que vai e vem.

Nenhum comentário: